Acredite em mim: você vai precisar de uma dose, depois
(errou. tente aqui, agora)
Mesmo que eu morra aos 100 anos, três vezes isso não me daria a dimensão do que você sente ao martelar o seu dedo. Você pode tentar me explicar de todas as formas, pacientemente, em todas as línguas, desenhar gráficos, fazer comparações, analogias, me mostrar filminhos. Não vai adiantar.
Não há como mensurar o que uma outra pessoa sente. O espécime humano e seu estupendo senso auto-preservativo só pode esboçar o que acha que um outro sente a partir de sua própria experiência - e a ausência disso quase sempre revela um quadro de sociopatia. Pois bem. Eu nunca fui estuprado. Nunca sofri nenhum tipo de abuso seja lá de qual ordem, mas ontem, assistindo Irreversível (do argentino Gaspar Noé), acho que cheguei muito perto de ter uma idéia clara do que uma mulher sente ao passar por esse inferno.
Noé ombreia com Von Trier e Patrice Chéreau quando o assunto é um tipo bem específico de cinema: aquele que é calculado até o último centímetro de fotograma para chocar, causar reações, enfiar um cabresto no espectador e conduzi-lo aos trancos filme abaixo. O que é algo que me irrita um pouco. Porque quase sempre caio na armadilha (saí do cinema com o joelho amortecido pelos meus próprios murros, quando vi Dogville), apesar de meus olhos já estarem calejados em distinguir esses truques de linguagem mesmo antes de alguns aparecerem na tela. Roteiro deslindado de trás pra frente, câmera desorientada e desfocada, trilha opressiva, todos esses artificialismos que já torraram a paciência estão lá. E apesar de todo esse lugar-comum você acaba se surpreendendo.
A busca pelo estuprador pelos corredores da boate Rectum é arrepiante, não dá pra ficar indiferente. 8MM é um passeio pelo Eurodisney, comparando. E os quase dez minutos sem cortes da cena de estupro compõem uma das sequências mais ultrajantes da história do cinema - porém necessária. Noé não acredita no bom selvagem de Rosseau. Sua idéia é mostrar o ser humano como uma besta revestida de sociabilidade. Exageros à parte, o filme tem a seu favor um mérito inquestionável - ainda que utópico: é bem capaz de fazer com que um imbecil desses pense duas vezes antes de querer fazer algo similar. Ou - antes - assim espero.