Vanishing Point
(errou. tente aqui, agora)
Enfileirando numa ordem decrescente as sugestões enviadas por vocês para montar um set list que não fizesse feio num próximo Arrancadão desses, acabei criando um efeito colateral: surgiram alguns critérios sobre a montagem e/ou desmontagem do elemento mais importante (fora os auto-falantes, claro) dessa história: o carro. São eles:
+ Injeção eletrônica é coisa de fresco.
+ Ar condicionado e direção hidráulica pra quê?
+ Mencione ABS e ganhe uma escarrada nos sapatos.
+ Num mundo perfeito, apenas esses modelos de suspensão deveriam existir: o "pau véio", o "queixo duro" e o "osso seco".
+ Motorização: qualquer uma desde que adaptada para uns, no mínimo, duzentos cavalos acima do permitido.
Submeti meu próprio carro ao rigor dos critérios acima e descobri que dirijo um veículo quase tão sissy quanto o da Penélope Charmosa. Frente tal fato, percorri algumas oficinas abaixo do razoável aqui de Sta. Felicidade em busca de onde a dor e o desespero se hospedam em férias. E achei. Meu afável mecânico puxou uma porta corrediça e provou-me que o demônio tem olhos verdes: um Ford Maverick 75 Super verde-musgo que, a despeito do tempo ali parado, ainda não tinha arrefecido o mau humor e o desprezo pelos bípedes.
Apelido carinhoso: "Medonho". Canecos: 6. Desempenho: 4km/litro de gasolina. Um Volvo NH carregado com 12 toneladas de areia faz 2,5km/litro de diesel. Faça a comparação. Minha única experiência anterior com um modelo similar me havia dado, a cada arrancada, a idéia exata do formato das molas dentro do assento do suicida, digo, do motorista. Uma vez que considero esse o melhor cartão de visitas do mundo, me apresentei: ele respondeu ao toque dos meus dedos no capô com uma descarga elétrica quase imperceptível, menor que um estalo. Estava feito.
Ao teste, pois:
Obs. I - As 8 sugestões enviadas dão mais ou menos a quantidade certa para o lado A de um K7 de 60 minutos. Ei, você não acha que eu faria o desaforo de enfiar um CD player num Mavecão 75, certo? A ordem delas segue a resolução 02 do Manual de Normas e Procedimentos Para Gravações em K7 na Década de 80, ou seja: "a mais fodona por último".
Obs. II - O cálculo avaliativo funcionou mais ou menos assim: imagine um cabo de alimentação ligando meu cérebro ao meu pé direito. No meio do cérebro, um lugar para encaixar uma pilha (a música). O "fator crash" é medido pelo impulso incontrolável de pisar fundo no acelerador conforme a voltagem da pilha.
Obs III - Velocidade inicial: civilizados 60km/h.
Obs. IV - Circuito do teste: Pista do Bosa, ou "Bosômetro", na Lamenha Pequena. Ele mandou dizer que se alguém perguntar alguma coisa ele desmente ou não sabe de nada. Valeu, Bosa.
Driver Down - Trent Reznor: Aqui, tudo em ordem. A princípio, seguindo o martelo da música, comecei a ter um leve espasmo na pálpebra direita. Mas era reflexo involuntário causado por uma noite mal dormida. Acho. Nível de descontrole: 65 a 70km/h, sem perceber.
Mr. Self Destruct - Nine Inch Nails: Tremor um pouco mais intenso se extendendo pelos braços e indo até as mãos, que não paravam quietas. Sobressaltei-me até perceber que era o caminho inverso: na verdade estava apenas acompanhando o ritmo no volante. Nível de descontrole: arranhei a quarta na saída de uma curva.
More Human Than Human - White Zombie: Ainda perfeitamente administrável. Descobri duas coisas nesse ponto: 1) consigo fazer curvas dentro do traçado a 90km/h e 2) acima dessa velocidade a porta do passageiro do Medonho só fecha soldando. Nível de descontrole: certa dificuldade em apanhar a lata de cerveja do meio das pernas.
Drinking & Driving - Black Flag: O proprietário da horta ao lado da pista passou a questionar minha afirmação anterior. Talvez com alguma razão. Nível de descontrole: certa dificuldade em descolar folhas de repolho do pára-brisa usando apenas o limpador.
Fire On The Moon - Bellrays: Tremores faciais involuntários. Suor. Olhos vidrados. Mãos e volantes formando uma coisa só. Isto é, uma mão e o volante - outra mão e o controle de volume do Roadstar. Nível de descontrole: já não dá pra trocar uma idéia com o Viggo Mortensen sentado ao lado.
Who Was In My Room Last Night? - Butthole Surfers: Descubro que posso distinguir o formato das reentrâncias no pedal do acelerador, através do solado do coturno e... ei, elas parecem formar uma espécie de mensagem: V-O-C-Ê-J-Á-E-R-A-M-E-R-M-Ã-O-A-S-S-M-A-R-I-Ã-O. Hm. Interessante. Nível de descontrole: não páro de pensar que ainda preciso arrumar os ingressos para o Kill Bill.
Disengage the Simulator - CKY: Sinto saudades de quando era criança. Não sei exatamente por que. Talvez porque minha vida inteirinha esteja nesse momento sendo projetada no pára-brisa. Começo a notar um certo padrão de comportamento estúpido aqui. Outra coisa que sinto falta: curvas: O velocímetro marca 130 e não faço uma a pelo menos vinte minutos. Se eu consegui entender direito o que estava naquela placa, a saída para Ponta Grossa vai surgir nos próximos 4 km. Estranho. Nível de descontrole: olho para o retrovisor e o Jack Nicholson me devolve o sorriso. Peço um autógrafo.
Jesus Built My Hotrod - Ministry: Revelações, muitas. Certezas, várias. Praticamente me encontro agora numa espécie de útero de luz, confortável, silencioso e quentinho. Me desprenderia do cinto de segurança, caso tivesse feito uso de tal, e flutuaria em direção a origem de toda aquela calma e sabedoria. Isso, claro, se não estivesse nesse momento me debatendo contra os para-médicos que insistem em me amarrar a uma maca e enfiar uma máscara de oxigênio na minha cara. Nível de descontrole: desconfio que será preciso uma intervenção cirúrgica para soltar meus dedos do volume do Roadstar.