22.5.04
 
Sim City

(errou. tente aqui, agora)

Nós somos piores, bem piores do que pensamos. Não apenas temos a inclinação animal de destruição ao alcance das mãos, também fazemos isso ao escarafunchar lembranças antigas. É a nossa doentia necessidade de classificação, adequação, de contemporaneizar tudo ao nosso gosto. Só isso explica isso:

O mar nasce dos ladrões das embarcações.

Soa afetado, forçado, fajuto. Não chega nem perto do que aquele garotinho nu de cinco anos pensou cerca de 27 anos atrás, imerso até a cintura, ao ver a água que escorria pelo caninho na lateral de um barco, no litoral gaúcho. Cheguei a essa conclusão ao me recordar da mais antiga constatação que já fiz e, tentando passá-la para o papel, saiu isso. É fato: não bastasse o embotar característico da memória, boa ou não, ainda corremos o risco potencial de contaminá-la à uma simples evocação.

Não se trata apenas da dificuldade de descrição (sensações para movimentos mecânicos da fala) ou, ainda pior, da quase eucaristia que é transcrevê-las. Lembranças possuem seu código, seu tempo, seu valor próprio e guardam seu significado bem escondido até mesmo de quem as cria. É por isso que resolvi pensar nelas como elementos e entidades independentes. Veja que troço mais bacana: um lugar povoado e erguido pelas suas lembranças na forma de qualquer coisa. Agora imagine que você é contemplado em dar um giro pelas redondezas:

Um cara alto e com um andar meio esquisito seria aquela vez em que você comprou sua primeira camiseta perfeita.

Uma senhora asmática surge de uma esquina e se apresenta: Olá, sou suas corridas de sapos.

Você olha por cima de seu ombro redondinho e vê, do outro lado da rua, uma outra velhinha namorando vitrines. É a sua queda do telhado da garagem (não se sabe bem por que, mas elas são vizinhas de muro).

Ao se virar para continuar a caminhada você pisa numa formiga e lá se vai aquele dia em que lhe levaram seu relógio de pulso.

Também podem ser irascíveis: você aqui, espremendo os miolos para recordar sua senha da conta mais recente de e-mails e ela lá, trancada dentro de casa, emburrada, debaixo de três edredons.

Lá pelas tantas você se perde no vilarejo e tenta se lembrar do caminho de volta. Erra uma, duas ruas até achar a que lhe conduz ao centro da pracinha. À suas costas, pelo menos doze recém-nascidos berram pela primeira vez no ar morno da tarde.

Já um tanto familiarizado, você pergunta a um passante (lembra das brigas na rua de baixo?) sobre o paradeiro do cara alto. Sua intenção é confirmar se a tal camiseta era mesmo a do Kiss ou da Pantera Cor de Rosa. Ele lhe diz que jamais viu tal figura. E aí você se dá conta que passou tempo demais para que uma lembrança permanecesse a mesma.

Postes seriam seus discos emprestados e nunca devolvidos:

Estorninhos poderiam ser aquela primeira vez em que você escreveu chuleza.

Cercas seriam...

As possibilidades são infinitas.

E essa é a única conclusão que tiro disso: não tente descrever fielmente suas lembranças. Dê um carnê de IPTU para a grande e safada maioria delas.
 

 


Faltam apenas para o seu mais espetacular acerto de contas contigo mesmo.
TRALHA ENCOSTADA NO CANTO:
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