9.11.05
 
Sleepwalk mode

(errou. tente aqui, agora)

Hoje completo exatos dois meses em endereço novo: uma espécie de condomínio fechado cujas fachadas das casas são voltadas para o centro de um pátio pavimentado. Meu vizinho da esquerda possui ambos os músculos temporais (aqueles, logo acima das orelhas) tão destacados quanto os meus. Jamais tinha visto meu vizinho antes. Não fossem os temporais, teria logo de cara antipatizado com os olhos verdes, característica essa que me dá o direito de classificar quem os possui como - salvo exceções - indivíduo de pouca confiabilidade.

- 'dia! - me diz ele, enquanto embarca em seu carro.
- 'dia. - respondo, fazendo o mesmo e com igual sorriso.

Do pátio pavimentado que serve como área comum e coberta aos carros, saem cinco calçadas em aclive até o nível da rua - em cinco direções diferentes. Ambos engatamos a ré e iniciamos o afastamento triangular quando ele coloca a cabeça pela janela e pergunta:

- vai voltar de madrugada, de novo?

Eu páro, ele também. Dois motores VW em ponto morto emolduram meu espanto.

- como? - pergunto.

Ele sorri:

- perguntei se vai voltar de madrugada de novo. é o seguinte: hoje vem aquele pessoal pra pintar a calçada, se não chover. eles vão começar pela tua. daí você pode entrar pela guarita da rua de baixo e deixar o carro na minha garagem. se voltar cedo, é só buzinar. se for tarde que nem ontem vou te dar o meu controle do portão.

Vejo os temporais dele arquearem ainda mais enquanto estende o sorriso. Ele vê os meus desaparecem.

- beleza. só acho que você se enganou. ontem eu voltei um pouco antes das onze da noite. - digo, sorrindo apenas com o lado do rosto que ele pode ver.

Ele me olha um instante.

- hehe. desculpaê. devo ter confundido os barulhos dos alarmes. o do teu carro é uniloop também, né?

- é.

- igual ao meu. mesmo barulhinho que ouvi hoje lá pelas cinco e meia. engraçado que ninguém mais tem, aqui... mas beleza: pega aí a cópia do meu controle. - e arremessa o aparelhinho em minha direção.

Enquanto o observo desaparecer calçada acima ativo o rewind no meu cérebro. Não. Não cheguei em casa lá pelas cinco e meia - tenho absoluta convicção disso. E sim, ele tem razão. Somente nossos carros têm o mesmo alarme. Já ouvi todos os outros.

Meia hora depois estou dentro de um consultório na Rep. Argentina, deitado em uma maca e com um ortopedista apalpando minha perna esquerda logo abaixo do joelho.

- dói?
- pra caralho.

Ele volta pra sua mesa e me faz sinal pra segui-lo. Calço os sapatos, sento à sua frente e pergunto:

- qual o nome desse músculo aqui? - aponto para o meu temporal.

- temporal.

- ahh... beleza. só checando.

Ele abre uma gaveta e dá o diagnóstico:

- o que aconteceu na tua perna foi um estiramento. não chegou a romper nada importante mas arrebentou com um milhão de fibras. vai precisar de repouso, compressa e antiinflamatório - decreta enquanto apanha o receituário. Rabiscando, pergunta: - como foi mesmo que você lesionou?

- fazendo a dança do marinheiro popeye.

Ele me encara. Continuo:

- lembra da dança do marinheiro popeye? nos desenhos? ele pulava duas vezes em cada perna enquanto dobrava os braços alternadamente na frente e atrás do corpo. aí seguia em frente dançando.

- e você tentou fazer isso.

- sou um mestre nisso. sou conhecido internacionalmente como o cara que melhor dança a dança do marinheiro popeye. mas esqueci de fazer o aquecimento básico nessa oportunidade. e o coturno do pé esquerdo tava meio apertado.

- e quando foi?

- madrugada desse domingo pra segunda. aqui mesmo, nessa rua. eu e mais dois camaradas encostamos o carro em frente ao angeloni, ligamos o tom waits e fizemos uma roda de polka na canaleta do expresso.

Ele continua me olhando do mesmo jeito.

- pra você ver como são as coisas - finalizo. - meia dúzia de long necks e o fulano esquece de uma coisa tão básica como fazer um alongamento antes da dança do marinheiro popeye.

Uma hora depois estou sentado em minha cama com a sacola de remédios ao lado. Faço um rápido inventário das lembranças dos últimos dias e separo as mais relevantes:

* por mais que chegue em casa em horário hábil pra isso, não tenho tido um sono merecedor desse nome há meses.

* meu carro passou a consumir o dobro de combustível, apesar do trajeto diário permanecer essencialmente o mesmo.

* tenho flashes de coisas que realmente não lembro de ter presenciado.

* de uma hora pra outra não consigo mais achar nada que tenha anotado, seja lá onde for.

* números estranhos começaram a aparecer no meu celular como chamadas não atendidas.

* meu vizinho jura que me ouviu chegando em casa quase seis horas depois do que acredito ter realmente chegado.

Matuto mais um pouquinho e então finalmente a ficha cai.

Levanto da cama e faço a lista:

- quero aprender klingon.
- tocar piano.
- ouvir essa música, ao vivo.
- finalizar meu cubo mágico.

E a publico aqui, nesse blog, para que eu mesmo possa lê-la mais tarde. Pois, afinal, se agora virei um sonâmbulo com capacidades tão independentes quanto dar uma volta sozinho de carro, à noite, quero que esse lazarento realmente se esforce para que eu possa aproveitar o máximo dessa condição.

 

 


Faltam apenas para o seu mais espetacular acerto de contas contigo mesmo.
TRALHA ENCOSTADA NO CANTO:
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