Snap
(errou. tente aqui, agora)
O consultório da Rep. Argentina fica no segundo andar. Se tiver sorte - e se você for bem rápido - basta se inclinar um pouco pela janela pra conseguir ver, bem a tempo, o meio-fio da canaleta do expresso desaparecer à esquerda numa curva.
Há dez minutos atrás estava sentado na salinha de espera com uma revista apoiada nas pernas. Agora estou deitado de bruços numa maca e com um oftalmologista apertando minha lombar.
- Ortopedista - me corrige ele.
- Como?
- Ortopedista.
- Pois é. Foi o que eu disse.
- Não. Você acabou de me perguntar: "há quanto tempo você é oftalmologista?".
- Ah. Pois é. Nem me toquei. E aí? Há quanto tempo?
- Cinco anos clinicando fora a residência.
Em cinco anos uma coleção de lápis, qualquer lápis, mantém o viço do esmalte que o recobre não importando onde você a guarde. Em cinco anos a parede para onde olho agora será pintada cinco vezes com exatamente a mesma tinta, porém branca. Há cinco anos atrás ninguém sequer se importava com o destino desse imóvel.
- Há quanto tempo você trabalha nesse consultório?
- Ele é da família da minha mulher. O prédio inteiro foi erguido há quatro anos e meio, mais ou menos.
- Bingo.
Assim que ele se afasta me ergo e visto a camiseta. Sento-me à frente de sua mesa e ele pergunta:
- E aí? Estiramento com a dança do marinheiro, de novo?
- Não. Fazendo um crucifixo invertido.
- Fazendo o quê?
- Crucifixo invertido. Aquela série de trabalho muscular em academia. Você pega um halter em cada mão, se inclina feito um macaco em frente ao espelho e ergue os braços feito um retardado tentando voar.
- Faz tempo que você faz isso?
- Faz tempo que não faço. Voltei há uma semana, depois duns dois anos sem treinar porra nenhuma. Desacostumado, me inclinei demais.
Novamente o bloco, a caneta e o rabiscar.
- Teu problema aí é a possibilidade duma hérnia. Tem que tomar cuidado ao se inclinar. Se lesionar repetidamente vai direto para uma cirurgia de remoção de cisto intravertebral.
Apanho o receituário e vejo ainda recente os três furos que o martelar da caneta fez no canto inferior esquerdo.
Me pergunto se existe alguma lista no mundo onde estão todas as formas médicas de se encerrar uma consulta conveniada o quanto antes. Me lembro de algumas:
1: aquele estalar de língua no canto da boca como quem diz "beleza então, rapaz? pegue essa receita e desapareça";
2: o bater simultâneo das palmas das mãos na beirada da mesa - enquanto o dito se inclina um pouco pra frente, como se estivesse prestes a acionar o mecanismo ejetor em direção à estratosfera;
e, claro, 3: as três marteladas com a ponta da bic no canto inferior esquerdo da receita.
- Só mais uma coisa. - digo.
Ele finaliza o engavetamento do bloco e carimbo e me olha.
- Sim?
- Quais são as chances de um não-acontecimento acumulado por muito tempo acontecer de uma vez só?
- Como?
- Quais são as chances de um sujeito que jamais quebrou um osso por mais de trinta anos acabar moendo o corpo inteiro numa única vez?
Ele me encara por alguns segundos, em seguida tenta olhar janela afora mas desiste.
- Por exemplo. - acrescento.
Ele ergue as palmas das mãos para cima junto com os ombros e sorri.
- Não acredito que haja algum tipo de levantamento estatístico pra isso.
- Mas você deve se lembrar. Em três anos clinicando fora a residência.
- Cinco.
- Em cinco anos clinicando fora a residência. Nunca apareceu alguém dizendo: "puxa doutor, minha mãe tinha razão. Ela sempre dizia que quando um fulano nunca se quebra, quando se quebra é pra valer" ou algo semelhante?
- Olha, sinceramente... mas porque isso? É alguma pesquisa?
- Na verdade, só tô tirando uma cisma. Fazendo um paralelo.
- Bom... sei lá. Acho que não é tão simples assim. Não basta você nunca ter quebrado um osso na vida pra quebrar todos de uma hora pra outra. Você tem que considerar o quanto você tá exposto a esse tipo de risco. As chances são maiores pra quem pula de pára-quedas todo dia do que pra quem trabalha num escritório, por exemplo.
- Sim, sim. Eu sei. É exatamente esse ponto que me interessa. O fator exposição. Qual a lógica de um eterno não-acontecimento para alguém diariamente exposto a esse risco?
- Você pergunta qual o sentido de algo jamais acontecer com alguém que está sempre propenso a isso?
- Exatamente.
Ele se recosta na cadeira.
- Bom... acho que aí a gente acaba entrando num terreno metafísico demais pra ser discutido. Tem a ver com regras e exceções, com cálculos de probabilidades, coisas que nem sempre nos damos conta, etc. Não faz parte do meu dia-a-dia profissional, por exemplo. Aí fica difícil.
- Eu sei. Mas fiquemos com o exemplo do pára-quedista, então. O sujeito pula de um avião todos os dias, por algum motivo, durante trinta anos e absolutamente nada acontece. Imagine que, por um momento, ele comece a se perguntar qual a razão de existir a possibilidade dele se arrebentar inteiro, já que ele jamais se quebra. Qual o sentido de existir algo que você sabe que é perfeitamente capaz de ocorrer com você, mas que nunca ocorre? Qual o sentido dessa eterna eminência?
Ele coça a barba debaixo do queixo e estende a mão em minha direção como se estivesse rejeitando mais uma rodada de cerveja.
- Peraí, que agora o troço ficou confuso. Tem certeza que é sobre quebrar ossos que você tá falando?
Deixo que meu silêncio responda. Ele continua:
- Você se refere a quebrar ossos ou "quebrar ossos"? Você tá falando sobre se a...
- Opaopaopaopa - interrompo. - não precisa mencionar.
Penso em lhe dizer sobre minhas intenções em transcrever o diálogo para um blog cujo conteúdo permanece até hoje intocado pela palavra quase dita, sobre fidelidade a certas tradições, etc, mas deixo pra lá.
- Ok. - continua ele - Mas então me diga o que afinal te preocupa: a possibilidade de quebrar todos os ossos de uma vez só, já que isso nunca aconteceu até agora, ou ficar filosofando sobre o porque-da-existência-de-uma-possibilidade-que-nunca-ocorre? Ao meu ver, uma coisa meio que mata a outra, não?
- Mata.
- Pois então. Na minha terra isso se chama burrice. Nesse caso, ou você se preocupa com uma coisa ou com nenhuma.
Ele sorri. Meus temporais não se movem um milímetro. Ele continua:
- Tá bom, mas agora me responda uma coisa que fiquei curioso: você nunca chegou nem perto de "quebrar um osso"?
Como num surto de eidese, o cheiro de grama recém-aparada explode em minhas narinas como se o hiato de cinco anos desidratasse ao tamanho de cinco minutos. Se me desligar só mais um pouco consigo divisar o batente descascado daquela porta de madeira - 90km daqui.
- Já. - respondo.
No jaleco branco que ele usa e que tomo como tela para projetar essas lembranças, o entorno da porta engrandece e a panorâmica é preenchida pela fachada de uma casinha de madeira de quatro peças, cortador de grama com o motor ainda quente encostado numa árvore, fibras verde-claro pousando lentamente por todo o jardim.
- E como foi? - continua ele, agora inclinado para a frente. Me pergunto se existe alguma lista no mundo onde estão todas as formas médicas de se mascarar um interesse genuínamente pueril com um verniz de análise clínica.
São seis ou sete passos do portão até a porta. Pisco agora os olhos como pisquei há cinco anos atrás, cego pela mudança de claridade. A escuridão da sala regride e se refugia nos cantos, nas bordas dos móveis encostados na parede, nos quadros pequenos pendurados em diagonal e na faixa de cabelos escuros que desce suas costas enquanto dobra lentamente uma pilha de roupas retiradas há pouco do varal.
- Eu a tinha conhecido dois dias antes - respondo. - recém-solteiro numa cidadezinha distante menos de uma hora daqui.
À sua esquerda, perto do telefone, o objetivo da minha visita: dois CDs que eu havia deixado na noite anterior. As evidências mais visíveis da minha intrusão em seu universo simples e terrivelmente lógico de moça do interior - e mesmo assim ela não percebe minha presença. Decido fazer algum comentário a respeito quando a ouço murmurar baixinho a melodia.
- Imagino que ela não precisou fazer muita coisa. - ele supõe.
- Você não tem idéia do pouco que ela precisou fazer.
Somente essa imagem. Alheia a tudo ao redor, recém-invadida por um mundo completamente diferente do seu, de costas para mim, cantarolando uma música que ela jamais tinha ouvido antes.
Fico ali durante todo o tempo, paralisado no meio daquela sala e com seus cabelos à distância de meu braço, sentindo o violento torpor inicial indo embora. Às cegas, dou dois passos soleira afora e silenciosamente desapareço da casa, do jardim e, dois dias depois, da cidade.
- Você não tem idéia do quanto ela não sabe o que fez. - completo.
- O mais perto até agora de "quebrar um osso".
- É.
Em cinco anos uma coleção de lápis, qualquer lápis, mantém o viço do esmalte que o recobre não importando onde você a guarde. Em cinco anos a parede para onde olho agora será pintada cinco vezes com exatamente a mesma tinta, porém branca. Há cinco anos atrás alguma outra pessoa encontrou dois CDs no meio de uma coleção em que Lou Reed certamente se sentiria ofendido e pensou em perguntar a respeito. Imagino que essa pessoa tenha olhado para aquela faixa de cabelos escuros dividindo suas costas, possivelmente lavando a louça - e desistido.
- Bom - diz ele, apoiando as duas mãos no tampo da mesa. - "quase" já é alguma coisa. - e sorri, levantando-se, no que é imitado por mim. Ele continua, apertando minha mão: - Cuidado com as danças de marinheiro e os crucifixos. Até outro dia.
Sorrio, afirmativamente.
A espécie humana possui o maior senso de auto-preservação de toda a natureza. Um suicida no alto de um prédio, completamente convicto do pulo, procura instintivamente um lugar para se agarrar quando um vento mais forte balança seu corpo. O disparo muscular que pôe os membros em alerta corre na velocidade do som. Talvez seja por isso que é tão difícil torcer o tornozelo por conta própria.
Me apóio no pé direito enquanto viro seu dorso rapidamente pra fora do eixo do meu corpo. Um estalinho sobe pela minha canela junto com o estiramento. Faço um semicírculo desequilibrado em volta da cadeira onde estava sentado e me apóio no encosto, pé levantado como uma garça corcunda posando para uma foto. Apalpo o tendão e sinto a temperatura da região crescendo alegremente.
Ainda sorrindo e mancando a meio caminho da porta me despeço:
- Volto em três dias.
E desapareço escada abaixo.