Dica de profissão
(errou. tente aqui, agora)
O novo livro de Chuck Palahniuk chama-se Haunted e foi lançado lá fora em meados do ano passado. Obviamente sua publicação aqui no Brasil ainda vai levar algum tempo, por isso não consegui me segurar dentro das calças e fiz uso da cópia original que meu considerado Thiago me fez a gentileza de emprestar e traduzi uma de suas 23 histórias impressionantes.
A melhor de todas, sem dúvida alguma, chama-se "Guts". É a primeira do livro e só não foi a escolhida devido a partes iguais de preguiça e receio de mexer em algo sublime.
Escolhi essa - "Product Placement", a décima-quarta - por ser a menor e por melhor concentrar o espírito da obra toda: o relato de um grupo de escritores que através de três meses de isolamento num antigo teatro abandonado tentam criar a obra de suas vidas.
Não preciso nem dizer o quanto você deve 1) ler esse livro, 2) levar em conta que trata-se de uma tradução livre e 3) enjoy the meal.
Colocação de Produto
Uma história de Chef Assassino.
Ao sr. Kenneth MacArthur,
Diretor Empresarial de Comunicações
dos produtos Kutting-Block
Caro sr. MacArthur,
Como acredito que seja de seu conhecimento, devo lhe dizer que o sr. criou uma grande faca. Uma excelente faca.
Já é bastante difícil fazer qualquer trabalho profissional numa cozinha sem ter que tolerar uma faca ruim. Crie um allumette de batatas perfeito, mais fino que um lápis. Um perfeito corte cheveu, tão grosso quanto um arame - metade do diâmetro de uma batata frita normal. Ganhe a vida cortando cenouras brunoisette com a panela de sauté já aquecida e borbulhando manteiga do lado, gente berrando pelas batatas cortadas à minunette e você aprenderá rapidinho a diferença entre uma faca ruim e uma Kutting-Block.
As histórias que eu poderia lhe contar... vezes e vezes sem conta, como suas facas tiraram meu rabo do fogo. Chiffoneie uma chicória belga por oito horas e você terá uma pálida idéia de como é a minha vida.
Ainda assim - e isto não falha nunca - você passa o dia cortando cenouras-bebês, esculpindo cada uma no formato de perfeitas e alaranjadas bolas de football e aquela, exatamente aquela que você danificou, cortou errado, é justamente a que aterrissará no prato de algum cozinheiro frustrado, algum zé-ninguém com uma graduação colegial em serviços hospitalares, somente um pedaço de papel, que agora pensa ser um crítico de restaurantes. Algum imbecil que mal sabe mastigar e engolir que estará escrevendo no jornal da próxima semana o quanto o chef do Restaurante Chez é descuidado ao esculpir suas cenouras.
Alguma vadia que nenhum fornecedor de bufê contrataria sequer para ornamentar cogumelos estará escrevendo como minhas chirivias cortadas à bâtonnet são grossas demais.
Esses traidores. Não, é sempre mais fácil prestar atenção nos erros pequenos do que propriamente cozinhar uma refeição.
A todo momento que um sujeito pede as batatas à dauphinoise ou o carpaccio, saiba que alguém em nossa cozinha faz uma pequena prece de agradecimento pela existência das facas Kutting-Block. Pelo perfeito equilíbrio delas. Pelo cabo rebitado.
É óbvio que - deixa eu bater na madeira - todos nós poderíamos estar ganhando muito mais dinheiro fazendo menos trabalho. Mas o problema é que se vender, virar um crítico, colocar-se numa posição de sabe-tudo, fazendo piadinhas pobres em cima de gente tentando ganhar a vida tirando pele de língua de bezerro... separando gordura de rim... puxando membrana de fígado... enquanto esses críticos sentam em seus escritórios limpos e bacanas e digitam suas reclamações com seus dedos limpos e bacanas - isso simplesmente não é certo.
É claro, essa é apenas a opinião deles. Mas está lá, exposta ao lado das notícias que realmente importam - gente passando fome e assassinos em série e terremotos - com o mesmo tamanho de corpo na impressão. Alguém reclamando que sua massa não está al dente o suficiente. Como se sua opinião fosse um Ato de Deus.
Uma garantia de não-qualidade. O contrário do que você espera de uma propaganda.
Para mim, aqueles que podem, fazem. Aqueles que não podem, reclamam.
Sem jornalismo. Sem objetividade. Sem reportagem, apenas julgando.
Esses críticos, eles não conseguiriam cozinhar uma boa refeição mesmo que suas vidas dependessem disso,
Foi com isso em mente que iniciei meu projeto.
Não importa o quão bom você seja, trabalhar numa cozinha é o mesmo que morrer lentamente através de milhões de minúsculos cortes de faca. Dez mil pequenas queimaduras. Escaldamentos. Ficar em pé no concreto a noite toda, ou andar por cima de gordura ou pisos molhados. Síndrome do Túnel Carpal: lesões nos nervos do pulso por misturar, cortar e temperar. Limpar um oceano de camarões debaixo de água gelada. Dores nos joelhos e varizes. Lesões por esforço repetitivo nos pulsos e ombros. Uma carreira repleta de perfeitos calamares rellenos é o mesmo que um martírio por toda sua vida. Uma vida inteira dedicada à busca pelo ossobuco allá milanese ideal é uma longa e lenta morte por tortura.
Ainda assim, não importa o quanto você seja casca-grossa, invulnerável a críticas, ser espezinhado em público por um jornal desses ou por um escritor de internet simplesmente não ajuda.
Esses críticos online, eles custam dez centavos a dúzia. Qualquer um com uma boca e um computador.
Isto é o que todos os meus alvos têm em comum. É uma bênção o fato das forças policiais não trabalharem um pouco mais em conjunto. Assim elas não deixariam de notar que entre o que aconteceu com um escritor freelance de Seattle, um estudante crítico em Miami, um turista do meio-oeste postando sua opinião em algum site de viagens... existe um padrão remoto ligando todos os meus dezesseis alvos. Sim, e aí estão os meus anos de motivação.
Não há muita diferença entre desossar um coelho e um blogueiro espertinho que achou que seu costatine al finocchio precisou de mais Marsala.
E agradeço às facas Kutting-Block. Suas facas de aço forjado para tourné fazem ambos os trabalhos de forma linda, sem fatigar o pulso e a mão como acontece quando usamos essas facas baratas de fatiar, compradas pelo correio.
Da mesma forma, limpar as bordas de um filé e esfolar o traidorzinho que publicou um artigo sobre como seu bife Wellington foi destruído com o excesso de foie grass, ambos os trabalhos são executados de forma rápida e com o mínimo de esforço graças às oito polegadas da lâmina flexível de sua faca de trinchar.
Fácil de afiar, fácil de limpar. Suas facas são uma bênção.
São os alvos que sempre se tornam uma decepção. Não importa o quão baixas sejam suas expectativas quando você os encontra pessoalmente.
Tudo que você precisa é de um pequeno elogio para arranjar um encontro. Tornar-se o tipo de parceiro sexual que eles possam desejar. Melhor ainda: dar a entender que você é um editor de uma revista de circulação nacional, procurando fazer com que o mundo ouça sua voz. Para exaltá-los. Dar a eles a glória que tão imensamente merecem. Deixá-los importantes. Toda essa balela atenciosa, ofereça somente a metade disso e eles o encontrarão em qualquer ruela escura que você sugerir.
Pessoalmente seus olhos são sempre muito pequenos, cada um deles como pequenas e escuras bolas de gude dentro do umbigo de um homem gordo. Graças em parte às facas Kutting-Block, eles tendem a ficar mais apresentáveis. Limpos e estripados e saudáveis. Comida, pronta para um bom uso.
Depois de você eviscerar uma centena de galinhas d`angola, não é lá um grande problema abrir a barriga de um escritor freelance que disse, nalgum desses guias regionais de entretenimento, que as escarolas de suas tortinhas são picadas demais. Não, as facas francesas Kutting-Block de dez polegadas fazem até mesmo essa operação ser tão fácil quanto estripar uma truta ou um salmão ou qualquer peixe roliço.
É estranho, as partes que ficam em sua mente. Você observa o tornozelo magro e branco de alguém e consegue adivinhar o tipo de garota que ela costumava ser no colégio, antes de aprender a ganhar a vida atacando cozinheiros. Ou um outro crítico, que costumava usar seus sapatos marrons tão polidos quanto a cobertura de caramelo de um crème brûlée.
É a mesma atenção aos detalhes que você dedica a cada faca.
Esta é a atenção e preocupação que costumo usar em meu trabalho na cozinha.
Ainda, assim, não importa o quanto eu seja cuidadoso, é só uma questão de tempo até a polícia me apanhar. Com isso em mente, meu único medo é o fato das facas Kutting-Block serem associadas na mente do público com uma série de ações que as pessoas possam não compreender.
Muita gente poderia entender minha preferência como uma espécie de propaganda. Como Jack o Estripador fazendo um comercial de televisão.
Ted Bundy fazendo um filme publicitário para as cordas Tal e Qual.
Lee Harvey Oswald lançando um novo rifle da marca Isso e Aquilo.
Uma espécie de propaganda negativa, obviamente. Talvez até mesmo algo que poderia prejudicar seriamente sua posição no mercado e vendas pela internet. Especialmente nessa próxima temporada de varejo natalino.
É procedimento padrão em todos os grandes jornais, no momento em que eles ouvem algo sobre um grande desastre aéreo - uma colisão em pleno ar, um seqüestro, um acidente na pista - eles sabem que devem deixar em branco todos os grandes espaços publicitários de companhias aéreas naquele dia. Porque, dentro de minutos, todas elas ligarão para cancelar a publicação, mesmo que isso signifique pagar preço cheio por um espaço que não vão utilizar. Um espaço usado no último instante como uma espécie de brinde publicitário para a Sociedade Americana do Câncer ou Distrofia Muscular. Porque nenhuma companhia aérea arriscaria ser associada às péssimas notícias daquele dia. Às centenas de mortos. Ser associada dessa forma na mente do público.
Não é necessário esforço algum para se lembrar do que os chamados Assassinatos da Tylenol fizeram pelo estoque do produto. Com sete pessoas mortas, somente o recall de 1982 do remédio custou $125 milhões para a Johnson & Johnson.
Esse tipo de propaganda negativa é exatamente o oposto do que você espera de um anúncio. Exatamente como os críticos fazem com suas resenhas depreciativas, publicadas somente para mostrar o quanto eles podem ser espertos e maliciosos.
Os detalhes de cada alvo, incluindo cada faca utilizada, ainda estão bem frescos em minha mente. Não seria necessário muito esforço para a polícia me fazer confessar, tornar isso público, a extensa variedade de suas facas que usei e para qual finalidade específica.
Para sempre depois disso as pessoas farão comentários sobre os "Assassinatos das Facas Kutting-Block" ou "Assassinatos em Série das Facas Kutting-Block". Sua empresa sabe muito mais sobre isso que um simples anônimo como eu. Você tem uma faca em tantas cozinhas, nesse exato momento. Seria uma vergonha terrível ver uma geração inteira de qualidade e trabalho duro arruinada por causa do meu projeto.
Por favor, analise em sua mente. Críticos de comida não compram muitas facas. Deixa eu bater na madeira, mas a simpatia da indústria poderia estar, nesse caso, do meu lado. Eu, um herói das bases do partido, da classe trabalhadora. Você nunca sabe.
Qualquer investimento que você faça, nesse sentido, isso nos beneficiaria mutuamente.
Quanto mais recursos você consiga providenciar para que eu não seja capturado, menores as chances desses fatos desafortunados alcançarem o consumidor médio de suas facas. Uma doação tão pequena quanto cinco milhões de dólares faria com que eu cruzasse a fronteira para viver num outro país, sem notícia alguma sobre minha pessoa, longe, longe o bastante de sua área de mercado. Esse dinheiro garantiria à sua empresa um crescimento estável dentro de um futuro brilhante. Para mim, o dinheiro serviria para que eu fizesse alguma coisa em algum outro campo de trabalho, uma nova carreira.
Ou, por uma quantia tão pequena quanto um milhão de dólares, eu poderia trocar para as facas Sta-Sharp - e, caso fosse pego, jurar que sempre usei seus produtos de segunda categoria por todo meu projeto...
Um milhão de dólares. Que tal isso lhe parece para fidelizar uma marca?
Para contribuir, por favor, publique um anúncio nessa próxima segunda-feira em seu jornal diário local. Assim que ele estiver lá, entrarei em contato com você para aceitar sua ajuda. Até lá, continuarei com meu trabalho. De outra forma, você pode aguardar por um outro alvo.
Obrigado por considerar meu pedido. Aguardo notícias suas, em breve.
Nesse mundo, onde tão poucas pessoas dedicam suas vidas para criar um produto de qualidade tão grande, eu o aplaudo.
Continuando, como sempre, seu maior fã,
Richard Talbott.