Sobre a natureza da turbulência
(errou. tente aqui, agora)
Vez ou outra me obrigo a concordar com quem não me lembro. Tenho uma enorme facilidade em esquecer rostos e nomes - mas não suas idéias e seus ditos, quando bons. Ainda que pareça despropositado, tudo que posso lhe oferecer, eventual e notório(a) frasista que por ventura cruze meu caminho, é a publicação anônima de sua lavra aqui, quando achar satisfatório o encaixe com o que escrevo.
Portanto presumo que não preciso de aspas quando digo que você, seja lá quem for que li há bastante tempo, está coberto de razão ao reclamar os direitos de defender com sangue certos locais da região onde se vive. Puramente pela imagem que temos de algumas ruas, praças, esquinas. Uma simples citação mil vezes melhor que apropriação indébita, presumo portanto.
Sob uma certa luz, numa específica hora de qualquer dia ensolarado desses, trucidaria com prazer qualquer um que ameaçasse as sombras na pista de todo o trecho de via rápida entre a Kennedy e a Silva Jardim. Sentido bairro-centro. Qualquer um que resolvesse extinguir a maciez do rolamento em quinta marcha entre um e outro de seus aclives. Que desavisadamente ousasse remover a quase totalidade de copas fechadas das árvores que a margeiam.
- Quer que eu faça de novo? - ela me pergunta.
- Quero.
Enquanto sentimos os quatro amortecedores se comprimirem em direção ao asfalto na saída de mais um declive, ela retira os tênis e apóia os pés sobre o porta-luvas. Cruzados.
Do focinho ao símbolo no porta-malas, milhares de pequenas sombras, suspensas das folhas acima de nós, atravessam todo o carro e riscam de cinza a pele branca entre seus dedos e a canela. Acompanho o mesmo efeito sobre meus braços e tento me contentar em ver somente isso para evitar um acidente. Ela troca os pés de posição e o player pula para a próxima faixa. Não preciso nem olhar para o lado para sentir o ar de incredulidade.
- Você andou batendo a cabeça, foi? - ela pergunta.
- Espere pra ouvir o resto. Tem ainda Erasure e Sade. "Smooth Operator".
- Qual o motivo dessa besteira?
- Tenho uns amigos que querem fazer algumas versões sujas de músicas doces assim. Me convidaram pra cantar. Isso aí é minha lição de casa.
- Que horror. - ela diz.
E sorri.
Daqui alguns putilhões de anos, quando Tom Waits tiver seu saco enfim repleto dessa história toda de universos e resolver encerrar a brincadeira, imagino que ele se sentirá quase satisfeito com pelo uma de nossas descobertas. A de que estamos além de nossa própria existência do ponto mais próximo que supostamente guarda outra forma de vida. E vice-versa. Uma distância tão descomunal que expira a vida útil de qualquer espécie em muitas e muitas vezes.
Você tenta chegar lá, mas não há tempo suficiente para isso.
Olho para o lado, vejo seu perfil recortado pelo borrão das imagens em FF que a janela encerra e imagino que tipo de casualidade faria com que você encontrasse por acidente um planeta habitado. Qual o acaso que lhe traz esse mundo dos confins do inimaginável diretamente para o seu alcance. Para o banco ao lado do seu, em seu carro.
Continuo vendo seu sorriso e concluo que, na pior das hipóteses, ainda tenho pouco mais de onze mil dias para descobrir.
