Nem escovar os dentes
(errou. tente aqui, agora)
O que ocorre é que sou um amante do café.
Eu poderia perfeitamente esparramar um punhado de café no tapete da sala e ficar me esfregando nele feito hiena na carniça. E hoje, após duas semanas e 28 cápsulas de Omeprazol em perfeita abstinência de cafeína, sinto-me plenamente capaz de dormir abraçado com um pacote de Café Damasco.
- Você já sentiu algum tipo de indisposição frequente? Tipo azia, queimação de estômago, essas coisas?
Fico olhando para o monitor flat que nos separa, eu e o otorrino, em cima de sua mesa. Na tela um corte tridimensional de um crânio mostra a laringe, esôfago e a língua muscular em forma de sofá desses caros, assinados por um designer, vermelho-sofá. Sobre a imagem, como se uma criança tivesse se divertido com um lápis, uma série de riscos feito com o mouse tenta situar a irritação que me incomoda há cinco anos.
- Nunca. - respondo. - Tenho estômago de ema. Acho que consigo sobreviver de pregos, se for necessário.
Ele passa o mouse mais algumas vezes sobre a imagem, arruinando completamente o braço esquerdo do sofá e insiste:
- Tenho convicção que esse teu pigarro frequente vem daí. Você disse que fumou durante...?
- Onze anos.
- E parou há...?
- Cinco.
- Poizé. Pelas imagens da videoscopia deu pra ver que não há nada relacionado com isso. Seu problema é que seu estômago não tá se entendendo com o esôfago. Daí a irritação. Tome isso durante 60 dias, duas vezes ao dia e retorne pra gente ver no que deu.
Apanho a receita e me preparo para sair. Ele pergunta:
- Não vai perguntar sobre as restrições?
- Quais são as restrições nesses 60 dias?
- Quase nenhuma. Mas essencial e preferencialmente uma: sem café.
O que ocorre é que sou um amante do café.
Eu poderia perfeitamente entrar numa banheira de café e depois ficar em pé no telhado da casa, pelado, até que o vento o seque na minha pele. Gosto tanto que gostaria que fosse ilegal. E que seu uso descontrolado produzisse efeitos colaterais bacanas que fossem tratados em clínicas específicas. E que eventuais homicídios diretamente influenciados pelo seu abuso fossem discutidos em altas esferas. Efeitos colaterais mais bacanas que irritação no esôfago, por exemplo.
- Mas isso é desproporcional. - reclamo. - Café é sensacional. Tão sensacional que ficar sem ele deveria ter motivos mais justos. Não consigo pensar em nada menor que um câncer pra deixar de tomar café.
- Bom, não vá tomar isso como desculpa pra voltar a fumar, então.
Isso foi há 14 dias. E hoje, após duas semanas e 28 cápsulas de Omeprazol em perfeita abstinência de cafeína, tenho dois brinquedos para divertir os dedos enquanto espero o Windows carregar nessa charrete. Meu velho cubo mágico e um outro conhecido quase tão antigo quanto: uma carteira fechada de Marlboro, vermelho-Marlboro.
Que me cumprimenta fragorosamente a cada lufada mais forte desse perfume que me põe louco: o do café recém-passado que insiste em se esgueirar por baixo da porta do quarto. Hoje mesmo ele me perguntou se a última vez que nos encontramos havia sido há 18 ou 20 anos.
- Cinco. - respondo.
- Cinco. Escuta, você não pensa mesmo que fazer esse quid pro quo vai te adiantar um lado, né? Você ouviu o doutor. Essa tua tossezinha irritante não tem nada a ver comigo. Você tem que se entender é com o café, camarada. Ou melhor, desentender. Outra coisa: dei uma olhada por aqui e não vi nenhum isqueiro. Tá pensando em combustão instantânea, rapaz? E essa tua roupa? Você vai trabalhar todo dia vestido assim? Cazzo, ainda bem que eu voltei. Camisa pólo? Você deve estar brincando.
Abro a gaveta e o jogo lá. O lugar menos frequentável que pude imaginar para uma curta relação de 46 dias: bem ao lado da minha consciência.